quarta-feira, 4 de abril de 2012

LENDA DO FOLAR DA PÁSCOA


      Esta é uma das várias lendas que a tradição guarda ciosamente sobre o folar da Páscoa. É simples como a alma do povo, pois do povo ela vem. Diz-se que é muito antiga. Todavia, não se sabe ao certo a data em que começou a circular de boca em boca.

      Numa aldeia que a tradição não menciona, uma linda rapariga, pobre mas bela, tinha uma única ambição na vida: casar cedo. Diz a lenda que ela fiava sentada à porta de casa e orava no seu íntimo a oração que já vinha de avós para mães e de mães para filhas. Era assim a oração:

                                                         Minha roquinha esfiada,
                                                         Meu fusinho por encher,
                                                         Minha sogra enterrada,
                                                         Meu marido por nascer.
                                                         Minha Santa Catarina,
                                                         Com devoção e carinho
                                                         Tomai-vos minha madrinha,
                                                         Arranjai-me um maridinho.

      Embora a não entendesse bem, parecia-lhe que recitando esta fórmula antiga, que já havia casado sua mãe e sua avó, e as mães e as avós das moças da sua idade, ela seria igualmente atendida. Contudo, acrescentava sempre uma palavrinha sua, não fosse a Santa entender mal o seu desejo. E terminava, pois, dizendo:
      - Santa Catarina! Bem sabeis que me quero casar, com um moço que seja belo, e forte, e trabalhador, para que não fique na miséria...
      Ora bem. Tantas vezes e tão fervorosamente rezou, que Santa Catarina houve por bem fazer-lhe a vontade. E de tal modo que, de um dia para o outro, a jovem aldeã viu-se requestada por dois em vez de um pretendente! Um fidalgo lavrador, rico, educado, forte e belo, mas já passando dos trinta anos, e um jovem trabalhador da terra, belo e forte também, mas sem outra fortuna além dos seus braços, sempre prontos para o trabalho.
      Marianinha não sabia como decidir-se, hesitava sobre qual dos dois devia optar. Ambos lhe agradavam. Um representava a riqueza, a segurança, a tranquilidade… O outro, a juventude plena, o gosto de viver à custa do heróico labutar do dia-a-dia…
      Ambos lhe pediam uma resolução rápida. E ambos sabiam que o outro era a causa da indecisão da jovem. De modo que se viu forçada a recorrer de novo a Santa Catarina.
      Ajoelhada diante da imagem da Santa sua madrinha, Marianinha falou-lhe assim:
      - Ó minha Santa Catarina, ajudai-me a escolher! Ambos me querem… ambos são bons para mim… ambos me agradam… Qual deles devo preferir? Gosto da figura do Amaro, da sua juventude, do seu ar impetuoso e trabalhador… Mas também gosto do senhor fidalgo… das palavras bonitas que me diz… do seu ar pomposo e da riqueza que tem…
      E escondendo o rosto nas mãos:
      - Oh, minha Santa Catarina, sinto-me envergonhada e confusa!... Mas a verdade é que não sei escolher! Ajudai-me vós!
      Estava ainda de joelhos quando bateram levemente à porta. Marianinha levantou-se apressada e foi abrir. Era Amaro, o jovem e possante Amaro, de olhos negros e tez morena. Sorria-lhe. Um sorriso aberto, tentador.
      Marianinha estremeceu. Seria por esse que deveria optar? Mas o fidalgo era tão rico… tão delicado… tão imponente!...
      Amaro despertou-a desse devaneio.
      - Escuta, Marianinha. Penso que é tempo de tomares uma decisão. Ou bem que me amas… ou bem que amas o outro. Dos dois não podes gostar, acredita! Por isso, previno-te de que preciso de uma resposta tua até à Páscoa. Se até lá não me deres o sim, tomarei isso como prova de que não te interesso e ir-me-ei embora desta terra.
      Ela arriscou:
      - Para onde?
      Ele encolheu os ombros.
      - Que poderá isso importar-te? Se eu partir, é porque não me quiseste para marido.
      Ela desviou o seu olhar do olhar profundo de Amaro.
     - Não quero que te exponhas a perigos por minha causa!
      - Seguirei apenas o meu destino!
      Marianinha suspirou:
      - Bem gostaria de saber qual será o meu!...
      - Tu podes decidir. Porque não o fazes?
      - Não sei... Tenho de pensar...
      - Pensar em quê? Amas o fidalgo?
      - Não sei...
      - Gostas da sua riqueza?
      Ela apressou-se a acrescentar.
      - E das palavras bonitas que me diz!
      - Dizer-te que te amo, não achas bonito?
      - Acho, sim! Mas ele… ele diz isso de outra maneira!
      - Cuidado, Marianinha! A voz do coração é só uma!
      - Ele também gosta de mim...
      - Talvez. Mas o caso não é nosso: é teu. Tu é que tens de escolher um de nós, e só um. A não ser que não ames nenhum!
      Ela voltou a encará-lo.
      - Não, não é isso!... Eu amo-os aos dois...
      - Mentes, Marianinha! Não se amam dois ao mesmo tempo, já te disse! Por isso vê bem! Vou dar-te um prazo menos longo: quinze dias. No dia de Ramos virei ter contigo. Até lá deixar-te-ei à vontade. Adeus!
      Voltou costas bruscamente, o jovem Amaro. Marianinha sentiu-se entristecer. Ele ia zangado. Decerto que ia zangado. E se partisse? E se não mais voltasse? Encheram-se-lhe os olhos de lágrimas. Mas já a figura elegante do fidalgo se aproximava. Ela tentou disfarçar. Ele sorriu-lhe com brandura, dizendo:
      - Salve, Mariana, a flor mais bela que vi sobre a Terra! Meus olhos são felizes só porque te contemplam!
      Ela olhava-o enleada, sem saber que responder. Foi ele ainda quem falou:
      - Que tens? Pareces atrapalhada...
      Marianinha confessou:
      - Na verdade, estou. Dizeis coisas tão bonitas… que mal as entendo!
      Ele envolveu-a num olhar terno.
      - Mariana, se decidires casar comigo, hei-de ensinar-te tudo o que sei!
      - A mim?
      - Claro! E que achas estranho nisso?
      - Ora! Não sei… se poderei aprender!
      - Aprenderás, sim! O que é preciso é saber que me queres...
      Ela ficou ainda mais atrapalhada.
      - Bem... O Amaro...
      Ele interrompeu-a:
      - Já sei. Vinha ter contigo e ouvi as suas últimas palavras. Quer uma resposta no domingo de Ramos, não é assim?
      - É, sim, senhor. Mas não sei...
      - Tens de saber! No domingo de Ramos também virei aqui. Estou certo de que saberás escolher! Eu represento o amor, a riqueza, o teu bem-estar e o da tua família. Amo-te, e não deixarei que esse amor me seja arrebatado. No entanto... se a tua escolha está já feita...
      Ela apressou-se a exclamar:
      - Oh, não, ainda não decidi!
      - Tens a certeza?
      Marianinha fitou-o. Os olhos azuis do fidalgo olharam-na bem fundo. Ela esquivou-se a essa investigação, pedindo, interiormente, à Santa sua madrinha que a ajudasse. E o fidalgo despediu-se cortês, embora com uma sombra escura no seu olhar claro.

      Uma semana passou. Toda a aldeia comentava já o caso. A velha Balbina viera, de propósito, bater à porta de Marianinha para a informar:
      - Sabes? Isto vai ser bonito!...
      - Então que há?
      - Olha! Ontem à tarde o Amaro e o fidalgo encontraram-se cara a cara.
      - E depois?
      - Depois... sei lá!... Falaram... discutiram. Ia sendo o fim do mundo!
      - Ó minha Santa Madrinha!
      - E não sabes o melhor. Ambos afirmam que tu já decidiste. Ambos se julgam escolhidos!
      - Sim? Mas eu...
      - Mas tu não escolheste. Isso sabemos nós! Se já tivesses escolhido, não berravam eles tanto. Mas vai ser bonito, vai!... Olha que o Amaro jurou matar o fidalgo, se te desviasse dele com as suas falinhas mansas e a sua fortuna!
      Mariana tremia.
      - Mas... que hei-de fazer?
      - Ora! Decidires-te!
      - Mas como?... como?...
      Marianinha cobriu o rosto com as mãos. Chorava. A velha Balbina meneou a cabeça e comentou enquanto se afastava:
      - Está doida, esta rapariga! Nem sequer já sabe de quem gosta!
      E o Domingo de Ramos chegou. Toda a gente da terra esperava ansiosamente esse dia. Marianinha velara toda a noite, orando. Estava pálida, enervada, fechada num mutismo assustador.
      As horas da manhã passaram. Marianinha não saiu de casa. De súbito, a velha Balbina voltou a bater-lhe à porta, mas desta vez muito aflita.
      - Marianinha! Vem depressa que eles matam-se! Encontraram-se no caminho… à beira do barranco… ambos vinham para cá...
      Marianinha abriu os olhos, aterrada.
      - Onde estão eles?
      - Junto ao rio! Não sei como aquilo começou... Está lá muita gente... mas ninguém os aparta!
      Chorando alto, Marianinha afirmou:
      - Vou lá eu!
      - Mas não te demores, mulher! Um deles cairá morto!
      Aterrada, Marianinha saiu correndo. O rio ficava perto. Ofegante, chorando convulsivamente, ela estacou ante a luta feroz em que os seus dois pretendentes pareciam empenhados. Mal conseguiu gritar:
      - Parem! Parem! Não se matem, pelo amor de Deus!
      Mas para aqueles homens dir-se-ia que nada mais existia à sua volta do que cada um deles. Marianinha pôs as mãos:
      - Santa Catarina! Valei-me!
      De súbito, deu por si a correr para o barranco, gritando:
      - Amaro! Amaro!
      A este grito, os dois homens pararam de lutar, Amaro correu para Marianinha, abraçando-a. O fidalgo recompôs o vestuário, e sem uma palavra voltou para o seu solar. O povo olhava-os sem nada dizer. Ficaram assim alguns segundos. Depois, todos correram em bando a abraçar o jovem casal.

      Véspera de Páscoa. Marianinha e Amaro tinham combinado para breve o casamento. Todavia, a rapariga não andava feliz. Do fidalgo ninguém mais vira a sombra. Mas dizia-se à boca pequena que no dia do casamento ele havia de aparecer para matar o Amaro. Era como uma nuvem negra a toldar o sol dessa alegria nascente!
      Atormentada, Marianinha não se deitou nessa noite. Chorava e rezava. Pedia perdão de ter sido a causadora dessa inquietante situação. Fora a ambição que a toldara. Mas agora via claro. E queria que tudo acabasse em bem. Pedia então, entre soluços:
      - Ó minha Santa Catarina! Vós, que estais tão perto de Deus, falai-Lhe por mim e pedi-Lhe que me perdoe e me dê uma prova desse perdão!
      Foi então ao que se diz - que ela viu a imagem sorrir-lhe...
      Marianinha tomou alento. Manhã cedo saiu para o campo. Apanhou flores e colocou-as no altar de Deus. Chegada a casa estacou, surpreendida. Sobre a mesa das refeições estava um grande bolo com ovos inteiros dentro e rodeado de flores. Flores iguaizinhas às que ela levara ao altar. Julgando ter sido oferta de Amaro, correu a casa dele. Mas encontrou-o no caminho. Também ele ia a casa da noiva. Tinha encontrado, na sua mesa, sem saber quem o levara, um bolo semelhante ao de Marianinha. Resolveram ir para casa da jovem. E comentaram:
      - Quem poderia ter sido?
      Marianinha não respondeu. Mas sorriu. Amaro indagou:
      - Porque sorris?
      Ela olhou a imagem de Santa Catarina e explicou:
      - Sabes... Eu ontem orei muito… chorei muito... E pedi a Deus, por intermédio da Santa minha madrinha, que me desse um sinal...
      - Que sinal?
      - Um sinal de que estou perdoada... e de que tudo irá correr bem...
      - E pensas que foi Deus que nos ofereceu o bolo?
      - Não. Penso... que foi o fidalgo!
      - O fidalgo? E porquê ele?
      - Porque Deus quis que ele nos deixasse em paz, e me perdoasse a escolha que fiz...
      Amaro concordou:
      - Talvez... Só ele teria dinheiro para tão rico presente. Um bolo com ovos inteiros… e flores... Confesso que nunca vi! Onde teria ele ido buscar esta ideia?
      Marianinha agarrou uma das mãos do noivo:
      - Amaro! E se fôssemos agradecer-lhe?
      - Achas que sim?
      - Acho! É Deus que assim o quer!
      - Então, vamos!
      E saíram. Mas no caminho encontraram o fidalgo que lhes sorriu. Amaro apressou-se a falar-lhe:
      - Senhor fidalgo, quero agradecer-vos a vossa lembrança. O que lá vai, lá vai… e isso prova a vossa grandeza de alma!
      O fidalgo pareceu surpreendido.
      - Amaro, eu é que tenho de agradecer a vossa lembrança. Nunca vi em toda a minha vida tão lindo bolo com flores!
      O jovem casal entreolhou-se. As lágrimas afloraram aos olhos de Marianinha, que exclamou emocionada:
      - Deus é grande! Deus é bom!
      Apertaram-se as mãos. Separaram-se amigos. Mas só Marianinha sabia ao certo quem oferecera aqueles bolos com ovos e flores, verdadeiro presente do Céu.
      Na aldeia, a nova espalhou-se. A alegria foi geral. Chamaram ao bolo - folore. Com o rodar dos tempos, o folore veio a mudar-se em folar. E aí está como o povo explica a origem dos folares da Páscoa, cuja tradição mantém tão carinhosamente, como testemunho de boa e desinteressada amizade.
      Durante as festividades cristãs da Páscoa, os afilhados costumam levar, no domingo de Ramos, um ramo de violetas à madrinha de batismo e esta, no domingo de Páscoa, oferece-lhe em retribuição um folar. 
      O folar é, tradicionalmente, o pão da Páscoa em Portugal, confecionado com água, sal, ovos e farinha de trigo. Em algumas receitas é encimado por um ou mais ovos cozidos com casca.
      A forma, o conteúdo e a confeção varia conforme as regiões do nosso país

Fonte: MARQUES, Gentil, Lendas de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 103-108

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